Manifesto
Um Manifesto pelo Nooceno
Já não é novo o debate em torno do impacto da existência humana sobre a Terra. Incontáveis conferências, debates especializados e convenções já aconteceram centrados especificamente em quais os impactos, em quais magnitudes e em qual duração fenômenos como as mudanças climáticas, a acidificação dos oceanos e a destruição de florestas tropicais acontecem. É difícil, hoje, mesmo para o mais fervoroso dos negacionistas, defender que a Humanidade não deixou marcas permanentes sobre a Terra. Relativamente permanentes, é claro. Afinal, a emergência da própria vida terrestre é um fato mais ou menos delicado, portanto toda evidência de nossa existência tem uma data limite entre os 5 e os 7 bilhões de anos, quando astrônomos acreditam que o Sol se expandirá e consumirá nosso planetinha rochoso.
Entretanto, até que isso aconteça, haverá uma infinidade de evidências de uma espécie que em um curto período entre sua diferenciação dos semelhantes – todos extintos, o que aumenta a nossa ingênua impressão de sermos superiores ou especiais, mas isto é outra discussão –, há cerca de 1,8 milhão de anos, até o desenvolvimento de tecnologias agrícolas de larga escala que alteraram mais ou menos permanentemente biomas inteiros, a nossa breve porém memorável visita à Lua e a deposição de lixo plástico nos oceanos em massa já comparável à do total dos peixes, por exemplo. Alguns cientistas já defendem que este período seja chamado Antropoceno, pois haverá evidências mesmo a nível geológico (o dos mesmo dos fósseis e do petróleo) por exemplo – que nós estivemos aqui. Alguns apontam, acertadamente, para a agricultura ou para a intensidade de carbono emitida desde que dominamos os combustíveis fósseis, mas o mais emblemático talvez seja olhar para os radioisótopos que se espalharam pela atmosfera e depositaram ao redor do mundo depois da utilização de bombas nucleares, seja sobre civis ou em testes terrestres e oceânicos. É emblemático justamente por ser impossível que ocorresse naturalmente. É tentador imaginar um arqueólogo alienígena do futuro (ou o especialista equivalente de então) chegar à assombrosa conclusão de que aquilo só pode ter sido feito por alguém com algum grau de consciência, inteligência, avanço científico e suporte material.
Essa narrativa, um tanto sombria e desiludida, tem caracterizado o modo como vemos a influência humana sobre a Terra. Os debates entre ambientalistas geralmente têm, com uma frequência assustadora, esse subtom alarmista e urgente. E é preciso mesmo que estejamos em alerta, até para tentar corrigir os erros e melhorar os acertos. Mas será possível construir um mundo diferente? Alterar radicalmente esta narrativa e assegurar nossa própria permanência? Enquanto espécie, é claro, já que individualmente raramente ultrapassamos os cem anos. Outra forma de fazer essa pergunta pode ser: como construir um futuro quando o presente parece se desfazer sobre nossas cabeças?
Vladimir Ivanovich Vernadsky, um mineralogista e geoquímico de origem ucraniana e nascido no Império Russo, propunha que a Terra passou por três estágios: a Geosfera, desde o momento que os gases que a formaram condensaram-se pela gravidade até o resfriamento da crosta terrestre; a Biosfera, caracterizada pelo aparecimento da vida sobre a superfície e que passou a realizar importantes trocas bioquímica cada vez mais complexas e que alteraram o próprio sistema planetário e a atmosfera; por fim, a Noosfera, caracterizada pela emergência de uma espécie animal que é capaz de alterar paisagens inteiras e mover massas consideráveis com seu engenho. Sim, nós. O prefixo grego noos- pode ser traduzido como “razão” ou “mente”, já -sfera parece mais intituitivo, por sugerir a forma de globo do nosso planeta.
Esta ideia parece possibilitar, dada a sua aparente neutralidade de julgamento em relação ao impacto humano sobre a Terra, uma leitura histórica e uma projeção de futuro mais otimista. Ela nos possibilita vislumbrar a utilização do coletivo de nosso engenho e capacidade cognitiva para a construção de um futuro melhor. Onde a tecnologia e o aprendizado humanos sejam utilizados para causar um impacto positivo, nos reintroduzindo no sistema natural e criando a possibilidade de um papel de interveniente consciente. Outros animais influenciam ecossistemas inteiros, como é o caso da morte de uma baleia, um evento chamado em inglês de “whalefall”, quando um deste animais magníficos morre e afunda no oceano, seu cadáver sustenta uma comunidade biológica por até 50 anos. Podemos citar ainda as extensas redes subterrâneas de fungos que possibilitam a comunicação entre árvores da mesma espécie, e às vezes de espécies diferentes, constituindo as florestas em uma imensa comunidade durante milhares de anos.
Seria muita ilusão sonhar com um tempo onde o homem desceria de seu autoproclamado pedestal entre as demais formas de vida e se integraria na natureza melhorando-a e não apenas “mitigando impactos”, como defendem hoje alguns ativistas do mercado de carbono? O ecologista russo Victor Vasilievich Petrashov defendia, já em 1993, que podemos estabelecer as chamadas noocenoses (já discutimos acima o significado de noos-, o sufixo -koinos pode ser traduzido como “comum, mútuo, compartilhado”), uma biosfera de segunda ordem onde uma comunidade humana e não-humana – animais e outras formas de vida – constituiriam uma comunidade biológica artificial sobre um ecossistema degradado. Trocando em miúdos, um local onde a natureza destruída seria reconstituída por humanos e outros seres, não apenas sendo recuperada, mas melhorada.
Parece fantasia, mas há ciência sólida por trás deste pensamento. Quando retiramos nossa arrogância e a toda a exuberância estética que projetamos com o nosso olhar sobre a natureza, entendemos que do menor vírus à maior baleia azul e passando por todos os 7 bilhões de seres humanos, somos todos simplesmente moléculas orgânicas complexas realizando trocas químicas com o ambiente que nos cerca. E isso é carbono, o mesmo elemento do temível petróleo e ainda mais temível carvão natural e o mesmo elemento que está no aço que utilizamos na indústria e que constitui o tronco de qualquer árvore e todos os fios do seu cabelo. Quando pensamos desta forma, é possível introduzir conceitos de gestão, até mesmo de contabilidade, para lidarmos melhor com as consequências dos nossos processos produtivos, sejam agrícolas, industriais, artesanais ou simplesmente cotidianos.
Essa pode ser nossa contribuição. Essas comunidades, resultantes de uma nova consciência humana, mais madura e eficaz até, pode permitir que nos afastemos do inevitável naufrágio do Antropoceno em direção a uma era terrestre marcada pela melhora racional: uma era chamada Nooceno.
Alex José Simiema Filho
Artista plástico e Diretor Criativo BMV
Maria Tereza Umbelino de Souza
CEO BMV